quinta-feira, 28 de dezembro de 2017

ADIÇÕES e SAÚDE MENTAL

Há homens grandes e HOMENS capazes de grandes ATITUDES.

Há MÉDICOS que são muitíssimo mais do que técnicos licenciados em Medicina.
Há MÉDICOS grandes para servir os seus doentes, HOMENS que neles confiam.

Este texto não é para dar graxa a alguém. Também não é para ironizar, até porque os Homens não são todos iguais.

Este texto apenas descreve uma realidade que, situada em devido tempo, ajuda a perceber que na droga nem todos são iguais, nem tecnicamente estudiosos das mesmas preocupações, nem praticantes da mesma ética face ao doente e face à comunidade cientifica e à comunidade social.

Homenageio o Dr. Reis Marques

Este texto surgiu apenas e tão só, porque há muitos anos, quando ainda não era nada fácil, nem "prestigiante", reconhecer na Saúde Mental a realidade da toxicodependência, o MÉDICO psiquiatra Dr. Reis Marques, entendeu que era necessário reflectir mais sobre o que muitos ainda negavam: Toxicodependência e Saúde Mental. 
O Dr Reis Marques era então Presidente da Secção Regional do Centro da Ordem dos Médicos.

Este convite que me foi feito, para colaborar na Revista da Ordem dos Médicos, seguiu-se a um anterior equívoco[1]Desta vez a reflexão seria sobre uma realidade que então ainda não era assumida por muitos profissionais de saúde: Toxicodependência e Saúde mental.
E este texto foi mesmo publicado.

Outrora “a Droga”, uma ameaça nova, não era preocupação da área da saúde, não cuidada pela saúde, nem mesmo pela saúde mental. 

As primeiras respostas oficiais, no estrangeiro e também em Portugal, foram das forças da repressão.  E os poucos profissionais de Saúde que nos anos 60 a 80 do século passado, no estrangeiro e depois em Portugal, ousavam ajudar “drogados”, não eram bem vistos por muitos dos seus pares. Essa actividade clínica não era bem vista, não era um trabalho respeitado. 
Se desbravar caminho cria incómodos, ser pioneiro cria invejas.

Também é verdade que no estrangeiro e depois em Portugal, o oportunismo de comerciantes e até a farsa face às “curas”, não era coisa rara. Ainda hoje os cidadãos ignorantes ou descuidados, correm o risco de ser manipulados ou até enganados.

Em Portugal, foi uma revolução o envolvimento do Ministério da Saúde assumindo o tratamento de doentes toxicodependentes.
Estávamos em 1987 quando foi criado o Centro que se viria a chamar das Taipas (por se localizar na rua das Taipas), que tanto fez, que tanto ajudou tantos doentes e profissionais e que tanto incomodou.
Um dia escreverei muito sobre este projecto, para o qual fui convidado pelo Dr. Nuno Miguel, em que tanto me envolvi empenhadamente durante 21 anos em que fui responsável. Dez anos antes tinham sido criados no Ministério da Justiça três Centro de Estudo e Profilaxia da Droga (CEPD). E ainda antes, em 1973, o Prof Dias Cordeiro abriu no Serviço de Psiquiatria do Hospital de Santa Maria a primeira consulta para Adolescentes e Toxicodependentes.

Droga e Saúde foi um assunto que só lentamente, gradualmente, foi sendo assumido publicamente, mesmo pelos profissionais de Saúde Mental. Em privado o assunto tinha e tem outros contornos.

Quanto à formação de profissionais... nem todas as Faculdades de Medicina faziam formação de alunos em patologia aditiva. 

Foi a partir da década de 80, que foi sendo feito um grande investimento para que os Médicos de Família alargassem os seus conhecimentos e assim pudessem melhor tratar os seus doentes toxicodependentes. Destaque para o Instituto de Clínica Geral da Zona Sul e Ilhas que se envolveu de forma manifesta e mais tarde para a Associação Portuguesa de Medicina Geral e Familiar (APMGF) que também foi criando oportunidades para formação. (Exemplar foi o Dr ADELINO DIAS, médico de Medicina Geral e Familiar, competente, dedicado e amigo.  . https://www.youtube.com/watch?v=YtbqQEnyhTI

Também nos envolvemos bastante pessoalmente e de 1998 a 2000, também através da Associação Nacional de Intervenientes em Toxicodependência (ANIT) e da Associação Toxicomanies Europe Échanges Études (T3E), na formação e mobilização de algumas dezenas de médicos de Clínica Geral, pelo país. Mas também muitos médicos do Internato de Psiquiatria, internos de psiquiatria e de pedopsiquiatria, se interessaram, muitos dos quais assumiram uma nova forma de cuidar de doentes com patologias aditivas.
Foi um trabalho, muitas vezes desejado, outras vezes tolerado e também ouve quem não aceitasse, acontecendo até, nos anos oitenta, jovens médicos fazerem formação "às escondidas" das suas chefias em saúde mental.

Receber o apoio e estímulo do Dr. Reis Marques para publicar na Revista da Ordem dos Médicos foi, em minha opinião, uma atitude que muito contribuiu para que, quem não aceitava "pensar a droga", repensasse a atitude.

Consumir substâncias psicoactivas, legais ou ilegais é um comportamento de risco. Ficar dependente é uma consequência, um dano, uma sequela. 

São muitos os comportamentos de risco, com e sem uso de substâncias psicoactivas, que podem provocar danos. A dependência pode ser um desses danos.
Uma dependência patológica é consequência do consumo que fez adoecer o consumidor e que faz sofrer quem com ele esteja. O dependente deve ser ajudado a tratar a dependência e os restantes sofrimentos que estejam associados ao consumo, prévios, concomitantes ou posteriores.


Obrigado Dr. Reis Marques por ter ajudado a lançar a reflexão.


Passaram 16 anos e, infelizmente, ainda não temos as respostas necessárias na Saúde Mental e nos Cuidados Primários de Saúde a nível local, para responder às necessidades dos doentes e de suas famílias.

Mas temos esperança, porque, mesmo contra muitos interesses e medos, a ciência sempre avança.

Repito que há HOMENS capazes de ATITUDES GRANDES.

Há MÉDICOS que são muitíssimo mais do que técnicos licenciados









[1] A primeira, ocorrida anos antes a pedido de uma colega e feita em tempo record não terá passado nos critérios editoriais desse tempo e abortou. Na verdade, depois de um dia de trabalho ate às 22h seguiu-se uma noitada de mais 7 horas para corresponder ao convite/pedido de colega e jornalista.
Mas se desse trabalho nada foi publicado, no mesmo espaço outras vozes foram relatadas. Fruta da época em que, em Portugal, a então nova e progressista resposta face à droga, no âmbito da saúde, incomodava quem não concordava, nomeadamente cidadãos estabelecidos, estagnados ou até, com inveja.

segunda-feira, 9 de outubro de 2017

MELHOR SAÚDE Cuidados de Saúde Centros de Saúde e Adições

MELHOR SAÚDE

 Cuidados de Saúde em
PREVENÇÃO/Educação para a Saúde /Redução de riscos /Minimização de danos/TRATAMENTO/ Recuperação. Prevenção da Recaída é trabalho a fazer nos
Centros de Saúde

Nos Centros de Saúde tratam-se pessoas doentes e faz-se educação para a saúde.

http://drogaparaquesaiba.blogspot.pt/…/politicamente-incorr…



Os Centros de Saúde não são serviços isolados. São a base do SNS e estão articulados com os hospitais, de onde recebem doentes e para onde enviam doentes, sempre que medicamente indicado. E para os doentes estabilizados carentes de respostas sociais, articulam com estruturas sociais locais ou regionais.



Nos Centros de Saúde também são tratadas pessoas cujas doenças têm inúmeras recidivas, como acontece com pessoas (de várias idades) que sofrem de hipertensão, diabetes e outras doenças endócrinas, asma e outras doenças alérgicas.




Os profissionais dos Centros de Saúde são profissionais competentes. E mais competências tem quando estão actualizados. 




Por todo o país há Centros de Saúde e em cada localidade é a estrutura de Saúde com cuidados responsáveis e diferenciados mais próximos de cada cidadão. O Centro de Saúde local é a estrutura de quem se pode esperar a resposta necessária e adequado para os problemas locais de saúde individual, familiar e de saúde Pública.




Quem lá está conhece melhor do que ninguém o que se lá passa. E para bem responder tem que ter meios e conhecimentos para a resposta necessária.




Serão porventura razões associadas à ignorância e ao estigma que podem ajudar a perceber que se afastem doentes de serem tratados e cuidados nos Centros de Saúde. O Centro de Saúde tem que integrar e não excluir.


Quando no século passado chegou a “Droga”, a Saúde não quis intervir, nem a Saúde Mental, nem “lá fora” nem em Portugal. Porventura preconceito, ignorância, medo, estigma.







Mas as pessoas aprendem e os profissionais também





Em 1987 o Ministério da Saúde assumiu a “Droga” as “dependências” como um problema de saúde. E, a partir de todas as ARS, foi-se iniciando a criação de respostas para os problemas locais. Os estigmas e as resistências iam caindo e as respostas iam serem alargadas e integradas. Por razões estratégicas, fez-se uma rede paralela ao SNS, que tardiamente e de forma tecnicamente desapoiada e ainda estigmatizada em muitos sítios, regressou ao SNS. 

Este regresso, feito de forma pouco cuidada, tem que ser melhorado, tem de ser muito melhor orientado. 




Tem que ser feito, não por um técnico de saúde nomeado, por Médicos competentes pela competência que lhes pode ser exigida, pela profissão que têm.




Em Portugal os serviços da droga, desde que foram criados e separados com autonomia (1977), sempre foram aconchego para familiares e amigos de profissionais de saúde e de outas áreas sociais e também de homens políticos e de classes dirigentes. São inúmeras as histórias sobre este tema. Um serviço vertical está mais sujeito a pressões de interesses instalados que podem questionar a sua verticalidade. As “pressões” podem ser feitas por mordomias, nas chefias, sub chefias e adjuntos, desde diferentes telemóveis, horários não completados ou não cumpridos por conveniência, serviços no exterior, colocações ou transferências convenientes onde não existe lugar para tal, contratações por necessidades, publicações fundamentais, etc. Assim pode acontecer haver assimetrias significativas entre o que trabalha e ganha um profissional num local e em outro local, tudo no mesmo Portugal. 
Se no âmbito da Prevenção/Redução de comportamentos de risco as assimetrias podem extremar-se por nada existir, no plano do tratamento /recuperação, as assimetrias podem ter dimensão escandalosa na quantidade e na qualidade dos cuidados prestados. Estratégias …




Há que perceber o valor do conteúdo de quem brilha com a graxa que dá aos sapatos e se quem assim anda calçado não anda desleixado por dentro com roupa rota. Quem só vê montras não vê o que está lá para dentro… Por exemplo, que se sabe e que se tem feito sobre álcool, cocaína, canabis, sintéticas, adições sociais, comorbilidades? 


Conheço muitos profissionais muito trabalhadores e muito honrados. São estes, que trabalhando têm mantido com os doentes que neles confiam a esperança de melhor Saúde. Mas muitos estão cansados, desmotivados, desiludidos, perante uma triste realidade que era evitável: o real insucesso cá dentro, contratando com a imagem exportada. Muitos querem mudar. Muitos têm mudado.



Os serviços da droga e adições devem estar integrados na Direcção Geral de Saúde. 


Por diversas vezes escrevei que não havendo especialistas não há serviços especializados em adições. 
As adições são um problema de saúde: os Médicos de Medicina Geral e Familiar e os Psiquiatras têm que assumir as suas imensas responsabilidades em Saúde Mental. 


Continuo a trabalhar e ajudar quem em mim confia.


SE for da sua competência intervir, qual será o Centro de Saúde local que irá calar estas realidades?







quinta-feira, 31 de agosto de 2017

Mas.. E... Uso errado de MEDICAMENTOS Injectar comprimidos




Mas.. E... Uso errado de MEDICAMENTOS
também subsidiados pelo SNS
injectar  comprimidos na veia
Erro na dose e no local de uso

Muitos profissionais de Saúde que trabalham com pessoas doentes sabem que há consumidores que fazem mau uso de medicamentos. Fazem uso errado na dose e no local de absorção.
Nos anos 80 e início dos anos 90 este comportamento também existiu relacionado com o consumo injectado de alguns comprimidos, e foi então resolvido pelo Ministério da Saúde em relação a esses medicamentos que então foram objecto de mau uso. Mais tarde, outros medicamentos passaram a ser objecto de mau uso, quer por dificuldades no acesso ao tratamento,  quer por falta das necessárias respostas adequada dos serviços da Saúde: Prevenção - Educação e controlo dessa "oferta" para mau uso. Alguns "estão no activo". A situação de maus uso existe estabilizada de forma manifesta, ou em crescendo, desde há pelo menos 16 anos. Na falta de dinheiro para heroína, na falta de metadona, na falta de heroína consome-se o que se arranjar. E quem trabalha com consumidores sabe bem da existência dessa situação. Aos governantes que me ouviram nunca escondi essa situação.
Mesmo no último governo quem foi responsável por esta área foi informado e manifestou-se muito satisfeito com o trabalho da sua equipa.  Por aqui tudo na mesma, quero eu dizer, piorando.



Midazolam (Dormicum®) é um dos medicamentos mais referenciado como objecto de abuso.

A sua aquisição em farmácia está sujeita a receita médica obrigatória. Bem usado é um excelente medicamento nas indicações médicas e cirúrgicas adequadas ao BEM DA SAÚDE


MAS…

Mas pelos riscos inerentes à substância e nomeadamente pela sua capacidade aditiva não deve ser usado por pessoas em risco de dependência.

Mas, desde há muitos anos este medicamento é de fácil acesso, no mercado de rua da droga. Na verdade isto dura há muitos anos.





Mas este medicamento é muito mal usado por exemplo por doentes dependentes de heroína. Habitualmente os doentes consomem em sobredose, esmagam os comprimidos, misturam com soro ou água e injectam essa solução na veia, quando lhes falta heroína ou quando por exemplo é insuficiente a dose de metadona que tomam. Veja o vídeo: https://www.youtube.com/watch?v=ke_EkhL8yew



Mas com estes consumos são reais para o doentes os riscos de infecção, de embolia, de perturbação do pensamento e de paragem respiratória.


E…

E há médicos que conhecem doentes que têm estas práticas de consumo e de comportamentos de risco. Veja o vídeo:  https://www.youtube.com/watch?v=064_UgBbGAc

E há médicos que trataram algumas pessoas com sequelas físicas ou psíquicas  associadas a este tipo de consumos. Veja o vídeo:https://www.youtube.com/watch?v=afzXc2NJd64&t=15s

E há dirigentes que sabem há muitos anos que isto acontece.

E há dirigentes que sabem que do que terá ou não sido feito desde há muitos anos nada resultou com evidente eficácia na significativa redução da procura e acesso a estes medicamentos. Usam-se porque estão disponíveis para quem precisa.  O acesso de rua não foi anulado e tem de ser anulado, por razões de saúde.

E desde há muitos anos que venho partilhando e existência desta incompetente e inaceitável situação de mau uso, factos reais, com pessoas do poder, dirigentes na Saúde, governantes na Saúde e deputados da Nação. 

E até agora nada mudou.

MAS...


Mas se partilhar esta mensagem talvez “isto” mude seja por vergonha ou por ser assumida finalmente a responsabilidade.

A vergonha e os estragos de que sofre cada um destes doentes consumidores também são projectados sobre todos nós.

Obs: este medicamento mesmo no mau uso, é subsidiado pelo orçamento do Ministério da Saúde. Foi lamentável ouvir dizer que o “nosso orçamento (dos serviços da droga) no Ministério da Saúde são peanuts. Basta do mesmo. É preciso mudar e muito. 







domingo, 13 de agosto de 2017

DROGA de INSUCESSO DESMASCARADO. COCAÍNA

DROGA de INSUCESSO DESMASCARADO

Cada vez mais há quem não alinhe mais pela conveniência ou pela negação ou pelo disfarce da evidência, no aumento indisfarçável do consumo de Cocaína e não só   http://drogaparaquesaiba.blogspot.pt/2017/05/a-mesa-do-cafe-bica-com-cheiro-ou.html

Neste trabalho de Tânia Pereirinha Pereirinha  no Observador http://observador.pt/especiais/das-festas-de-sexo-hoje-a-francesa-charlotte-nos-primeiros-clubs-historias-de-100-anos-da-cocaina-em-portugal/ percebe-se como em Portugal é evidente a distância que tem existido entre a verdade da conveniência e a verdade da minha e nossa realidade, bastante diferente do sucesso que desde há vários governos continua a ser difundido pelos poderes.  

Tânia Pereirinha, jornalista, contactou-me e aceitou a minha sugestão de me acompanhar em mais uma visita ao terreno, sem maquilhagens, para perceber o que se passa e comparar com o que se diz que se passa. E aconteceu e publicou. Outros não publicaram.

Do trabalho de Tânia Pereirinha aqui destaco o que escreveu referindo-se à minha participação. Sou médico psiquiatra (não há em Portugal Especialidade , Sub-especialidade ou Competência em Adições ou Toxicodependência, mas há quem assim aceite ser “especialista”. 

O que tenho dito e escrito, tem por base o que estudo, o que vejo e o que oiço de doentes e de seus familiares, de consumidores e de colegas médicos e de outros profissionais que trabalham no terreno.


Das festas de sexo hoje, à francesa Charlotte nos primeiros clubs. Histórias de 100 anos da cocaína em Portugal
12 Agosto 2017429
Um século depois de ser introduzida em Portugal por uma francesa com olho para o negócio, a cocaína está uma vez mais a crescer. Vê-se nas festas, discotecas, nos cafés, nas ruas e até na água.
  1. 1859 – 1917. Remédio para as dores, histeria, sífilis e até azia
  2. 1917 – 1927. Charlotte, a primeira traficante
  3. 1980 – 1999. “Olha a branquinha da boa!”
  4. 2005 – 2017. Prostituição e “telecoca”
Pouco passa das 10h00 de uma segunda-feira de fim de julho. Na zona das Olaias, em Lisboa, na garagem de um prédio de habitação social cujo portão foi arrancado ninguém sabe dizer por quem nem quando, rodeados de lixo, garrafas vazias, caricas, seringas usadas, embalagens de preservativos intactas e sacos plásticos verdes, “Kit Prevenção SIDA”, dois homens e duas mulheres vão conversando enquanto preparam as primeiras doses do dia.
Sentados em sofás dispostos em L, que arrastaram do lixo para ali, têm mais conforto do que os outros toxicodependentes que consomem em barracas feitas de pneus, madeira e pedaços de lona ali mesmo atrás, nos baldios do Vale de Chelas, com vista para o cemitério do Alto de São João; pelo menos a droga não voa com o vento. Mas também sabem que não hão-de poder resguardar-se ali durante muito tempo: “Esta semana vêm aí arranjar isto e vamos ter de sair”, dizem, enquanto lamentam a inexistência das salas de consumo assistido de droga que, apesar de previstas na lei portuguesa desde 2001, não saíram ainda do papel.
No sofá mais próximo da porta, os homens — um português, na casa dos 40 anos, e um alemão, consideravelmente mais novo –, esticam as pratas onde vão depositar a heroína que dentro de instantes estarão a fumar, com recurso a tubos artesanais, também prateados: “Desculpem estarmos a fazer isto à vossa frente”, diz o português, de modos e discurso educados.
Encolhida no outro sofá, uma das mulheres prepara, em cima de um livro de capa dura e com uma pequena espátula, as pedras de crack que vai fumar, num cachimbo improvisado, com uma seringa partida a servir de boquilha. É um processo rápido, basta o tempo da explicação — “Isto é base, é cocaína cozida. A crua, que é a cocaína em pó, serve para cheirar ou chutar, esta serve para fumar” — e o cachimbo está pronto a acender. Vai fumando, como a outra mulher, dois anos mais nova, mas diz que também se injeta, cocaína e heroína, o que houver. Tem 42 anos e seis filhos, quase todos já crescidos, os menores “estão sinalizados pela Segurança Social”. De rajada, conta que consome desde a adolescência, que já traficou, diz que chegou a estar detida durante três anos no Equador, numa prisão sobrelotada e violenta onde dormia com um olho aberto e de onde só saiu graças a um indulto papal. Tenta a sorte: “Se vocês pagassem fazíamos aí uma entrevista como deve ser, podiam filmar e tudo, desde que não aparecesse a minha cara. Já vieram aí jornalistas que pagaram…”. Depois, como não há dinheiro, concentra-se no cachimbo.
http://img.obsnocookie.com/s=w800,pd1/o=80/http:/s3cdn.observador.pt/wp-content/uploads/2017/07/25113247/img_2685.jpg
O crack (ou base ou free base) é mais barato do que a cocaína em pó
“Estas são só as pessoas mais degradadas”, explica à saída da garagem o psiquiatra Luís Patrício, especialista em patologias aditivas, fundador e diretor do Centro das Taipas até 2008, cicerone do Observador por uma manhã, passada entre Olaias, Lumiar e ex-Casal Ventoso.
O que significa que há outras: em pleno 2017, a cocaína é uma droga verdadeiramente democrática. Há os que encomendam pelo telefone e consomem em casa, em festas regadas a champanhe; os que usam nas discotecas; e estes, que se escondem nos bairros mais degradados, explica. Todos juntos fizeram disparar as estatísticas dos últimos anos, diz o Observatório Europeu da Droga e da Toxicodependência, que põe a cocaína no segundo lugar do pódio das drogas mais experimentadas em Portugal (a canábis continua em primeiro), e dizem também os especialistas ouvidos pelo Observador.
“A meio da década de 80 começam a aparecer doentes que referem estar a consumir cocaína. Gradualmente torna-se bastante comum o consumo de heroína e de cocaína. Na maioria são consumidores que injectam cocaína associada a heroína — o speedball –, mas aumenta também o uso de cocaína snifada. No início dos anos 90, recordo-me de um doente na periferia norte de Lisboa contar que fumava uma pedra que desconhecia e que agarrava muito. Tratava-se de cocaína cozida, ou free base, cujo consumo se banalizou depois no século XXI, porque baixou o preço e aumentou imenso a oferta em locais e agentes de distribuição”, explica o psiquiatra Luís Patrício.

“Existiram outros bairros bem conhecidos, recordo que os doentes diziam que iam à Venda Nova, a Camarate. Foi muito conhecido, perto do aeroporto, o Bairro do Relógio, mais longe recordo as Marianas, em Carcavelos, e o Fim do Mundo, em Cascais. Mais para o centro de Lisboa recordo outros bairros citados pelos doentes: o Casal do Pinto, a Curraleira e, ainda mais central, a zona de São Bento, onde os doentes encontravam cocaína. Houve quem por lá ficasse fechado em algum lugar, dias seguidos a consumir cocaína. Para algumas pessoas essa frequência, a falta de cuidados e de estratégias e utensílios de prevenção esteve na origem da contaminação por doenças infeciosas, muito piorada com a chegada do VIH, situação que para algumas pessoas foi catastrófica”, explica Luís Patrício.

2005 – 2017. Prostituição e “telecoca”
Se nos anos 90 o consumo de cocaína aumentou muito, na década seguinte explodiu, sobretudo a partir de 2005 e entre a população mais jovem, quase sempre associada também ao abuso de álcool e de canábis, diz o psiquiatra Luís Patrício: “Com este crescimento da cocaína, instituiu-se outro hábito, misturar cocaína com álcool, o que faz com que o próprio fígado produza uma substância, chamada cocaetileno ou cocaetanol, que é ela própria outra droga. Ou seja, a pessoa consome duas e fica com três. Os estragos são maiores e o tratamento é mais difícil. Mas é um assunto que não é falado, é como se estivesse tudo bem”.
Nos anos a seguir à descriminalização que fez de Portugal um caso de sucesso em todo o mundo no que ao consumo de drogas diz respeito (foi no dia 1 de julho de 2001, sete meses depois de ser promulgada, que a lei entrou em vigor), a cocaína democratizou-se ainda mais.

Por um lado, garante o especialista, nunca foi tão fácil de encontrá-la: “Os meus clientes dizem que, por telefone, encomendam tudo o que é preciso, como se encomenda uma pizza”. Por outro, nunca o consumo foi tão tolerado: “Convém a todos. Já tive o dono de um bar a dizer-me que costumava vender uma média de x euros por noite e que, a partir do momento em que decidiu fechar os olhos ao que se passa na casa de banho, passou a vender três vezes mais”.

Um grama de cocaína pode custar hoje entre 30 e 50 euros. Se há quem consuma quando sai à noite ou quando o Benfica é campeão, como os amigos de uma paciente de Luís Patrício, que snifaram riscos no ecrã de um telemóvel, à mesa de um café de Lisboa, enquanto outros comiam caracóis e bebiam imperiais; também há quem se escape do trabalho à hora de almoço para comprar, numa média de duas vezes por semana (ou “quando há dinheiro”), como o homem de 43 anos que encontramos nas traseiras da Rua Maria Pia, entre as novas hortas construídas pelos moradores e as velhas salas de chuto improvisadas pelos toxicodependentes.
De calças de ganga e camisa branca às riscas azuis não dá sinais do estigma de que fala Luís Patrício e que distingue grande parte dos adictos que frequentam estas zonas mais degradadas — nem magreza extrema, nem dentição incompleta, nem marcas de picadas na pele. “Agora estou a trabalhar na construção, ando só na branca, não dou no cavalo”, explica, garantindo logo depois que está perfeitamente funcional e apto para voltar ao emprego. “Antes ainda vou ali tratar de uma multa que apanhei, por andar de mota sem carta”.
“Acompanho quatro meninas, todas mais ou menos da mesma idade, 20 e poucos anos, que se prostituem ou prostituíram desde o final da adolescência. Nos anos 90 era raro mas de vez em quando ouviam-se as histórias do jovem yuppie que consumia coca e comprava uma noite com uma mulher que também queria consumir. Agora isso é banal”
Luís Patrício, psiquiatra, especialista em patologias aditivas
“Enquanto for assim, enquanto andarem só a brincar, conseguem manter as vidas normais. O problema é quando deixam de conseguir, a cocaína snifada tem um grau de aditividade, fumada tem outro maior, injetada ainda mais. Tem um efeito tão rápido que quando falta a pessoa entra num sofrimento que não se aguenta e tem de ir buscar mais”, considera Luís Patrício, que garante acompanhar vários pacientes, endinheirados, que em vez de 1 ou 2 pacotes de um grama de cada vez estão habituados a comprar ovos de cocaína. “São 20 gramas, a 30 euros cada, é fazer as contas… E depois há as festas e os grandes eventos de música e de deporto: é muito mais comum do que as pessoas pensam, há sempre cocaína. Ainda há um par de anos um paciente meu, um homem bem colocado no mundo do desporto, abdicou de ir a uma grande festa num estádio por causa disso: ‘Se for vou-me rebentar todo com a coca e o álcool’.”
http://img.obsnocookie.com/s=w800,pd1/o=80/http:/s3cdn.observador.pt/wp-content/uploads/2017/07/26132229/img_2689.jpg
O psiquiatra Luís Patrício visita regularmente os locais de consumo de drogas na zona de Lisboa
A outra tendência que o psiquiatra tem vindo a registar é ainda mais preocupante e prende-se com o consumo associado ao sexo — ou do sexo como meio de possibilitar o consumo. “Acompanho quatro meninas, todas mais ou menos da mesma idade, 20 e poucos anos, que se prostituem ou prostituíram desde o final da adolescência. Nos anos 90 era raro mas de vez em quando ouviam-se as histórias do jovem yuppie que consumia coca e comprava uma noite com uma mulher que também queria consumir. Agora isso é banal”, garante o psiquiatra.
Tal como aponta para um canto agora deserto nas traseiras da Maria Pia, junto ao graffito de um cão que engole um homem — “Da última vez que aqui estive vi ali dois indivíduos a terem relações sexuais em troca de cocaína” –, também conta, parco em detalhes, a história da “menina dita normal”, filha de pais divorciados, que está prestes a completar 18 anos, começou a fumar charros aos 12, apanha bebedeiras frequentes desde os 14, e aos 16 experimentou pela primeira vez cocaína.
“Há dois anos, esteve com três homens, um deles muito conhecido aí na praça, num hotel de luxo de Lisboa. Hoje em dia, na Internet encontra-se tudo, é muito fácil. A quantidade de gente que está a consumir cocaína nunca mais acaba. E isso quer dizer que a prevenção falhou.”
Curiosamente há 1 ano publiquei este vídeo. Mala Da Prevenção Dr Luís Patrício
PORTUGAL E AS DROGAS – 1- Salões de consumos
Quem fala mais verdades sobre drogas? Doentes ou dirigentes?
Nem sempre e nem todos os doentes mentem.
A partilha ...
Pause
-2:27

Additional Visual Settings
Enter Fullscreen
Unmute
3,058 Views
Parte superior do formulário
Boost Post

Parte inferior do formulário

Quem quiser ler na totalidade o artigo da Jornalista Tânia