terça-feira, 15 de novembro de 2016



DESCRIMINALIZAÇÃO, 15 ANOS DEPOIS
Contributo para que haja mais verdade
Por Luís Patrício

Vou completar o que de bem tem sido divulgado na imprensa, com o que de menos bem tenho constatado, infelizmente.

A propaganda funciona, tem sido um sucesso. Mas a realidade infelizmente é outra.
  
Perdeu-se muito o respeito pelo crédito do saber e dos avanços técnicos. Como não há especialistas, sempre que necessário abundam “peritos”.

Contributo para a Srª Jornalista Joana Faria, do jornal Público,a quem agradeço o convite para colaborar no seu trabalho, bem como a publicação do que foi possível ser publicado.

Para conhecimento dos interessados, e com o acordo da jornalista Joana Faria, aqui deixo o texto enviado, na globalidade. 

Após anos e anos de conquistas de conceitos, quebra de estigmas e melhorias de respostas, ocorridas de final dos anos 80 até ao final dos anos 90 e início de 2000, esforço que se traduziu no enorme alargamento dos serviços de tratamento, na criação da lei da descriminalização e da lei de redução de riscos publicadas em 2001, passámos para um período bem diferente. Inicialmente de paragem (que é sempre um recuo) e depois para um período de sobrevivência planificada e cuidada de poder gradualmente mais afastado das realidades de quem sofre e até de quem trabalha. Em muitos locais a burocracia e até a falta de conhecimentos, gradualmente foi-se sobreposto ao mérito e à competência. E também gradualmente ressurgiu em Portugal a falta de vontade ou até o medo de falar e de ser prejudicado no emprego. Tudo isto confrangedor, mas verdade na minha opinião.

É público o meu desapontamento e a minha insatisfação pela não divulgação de toda a verdade.

Muito do trabalho técnico desenvolvido foi abafado ou prejudicado por finalidades estratégicas do benefício imediato, em prejuízo da estratégia de saúde integrada e prolongada. 
É real a involução dos últimos dez anos. As assimetrias de qualidade são inegáveis. Sabemos que sempre que se “perde” um profissional competente e se contrata alguém sem competência (mas útil para “tapar o buraco”), perde-se muito. 

A ausência de especialidade ou de competência reconhecida em patologia aditiva continua a ser o suporte para a nomeação de peritos, técnicos por vezes sem competência estrita nos assuntos, mas politicamente nomeados como peritos.

1 - Que balanço faz destes 15 anos? 

Na Declaração de Lisboa, de 1992, defendemos que o dependente é uma pessoa na condição de doente. De forma crua há que dizer que quando surgiu a descriminalização do consumo, que naturalmente defendi, já ninguém ia para a prisão por consumir um substancia ilegal. A lei anterior já não era executada plenamente, nem nas alternativas possíveis à prisão. Mas o estigma mantinha-se.

Mas é preciso dizer a verdade sobre as mudanças socio sanitárias ocorridas, nomeadamente desde 2000. A real redução da taxa de mortes relacionadas com consumo, por exemplo, por honestidade intelectual deve ser relacionada sobretudo com o alargamento ou criação dos programas de redução de riscos e com o aumento da oferta para tratamento nas diversas modalidades. Tal como a melhoria noutros indicadores. Na verdade isto não é consequência da lei da descriminalização como por vezes se insiste em dizer, mas do aumento das estratégias contra a exclusão social, na promoção do tratamento e da redução de riscos.

Quando lemos que antes da publicação da lei da descriminalização (2001) os doentes não procuravam ajuda médica com medo de serem denunciados à policia e presos (2011), ficamos no mínimo escandalizados com o método propagandístico. Lembremos a procura para tratamento por milhares de doentes, ocorrida desde o final dos nos 80. Mais oferta, mais procura.

Ficámos estupefactos quando lemos Lis Horta Moriconi 28/07/2009 Glen Greenwald conversou com o Comunidade Segura sobre a experiência portuguesa. Foi bem-sucedida? "Sim, em números absolutos, o abuso de drogas caiu". Isso aconteceu em Portugal. Eles têm campanhas de saúde reais, dezenas de milhares de crianças andando de bicicleta por toda Lisboa, por exemplo, e as campanhas entraram na rede educacional.

A propaganda funciona, tem sido um sucesso. Mas a realidade infelizmente é outra.


2 - Mais cedo ou mais tarde terá que haver mudanças nesta lei de 2001. 

Por exemplo, face à banalização do consumo de derivados da cannabis de origem desconhecida, haverá mudanças para reduzir os riscos a que estão sujeitos tantos consumidores de idades tão diversas.

Pelo menos, quando um significativo número chegar ao poder as mudanças acontecerão, para que haja menos riscos e sequelas

Mas mais importante é a necessidade do total respeito pela lei da redução de riscos, também de 2001 e de que muito pouco se fala, até porque muito do que permite e é necessário, continua sem existir. Os avanços que esta lei permite terão que ser respeitados e cumpridos na íntegra se queremos de facto melhorar e não recuar mais.


3 - Que falhas aponta à estratégia portuguesa em matéria de drogas e toxicodependência?

Vou completar o que de bem tem sido divulgado na imprensa, com o que de menos bem tenho constatado, infelizmente. 

Perdeu-se muito o respeito pelo crédito do saber e dos avanços técnicos. Como não há especialistas, sempre que necessário abundam “peritos”.

A ignorância nacional sobre álcool e o consumo abusivo é um escândalo.
Nos últimos anos vivemos 3 com abertura legal para venda a jovens após fazerem 16 anos. Impensável abertura comercial, com tudo o que a ciência já nos ensinava sobre álcool e cérebro jovem e com o que já era praticado na defesa da saúde em outros países.
Antes também não soubemos evitar o consumo massivo de álcool, embora na vizinha Espanha tal abuso na rua já existisse há muitos anos.

Também tivemos venda livre pelo país, e consumo libertário, de substâncias desconhecidas, sintéticas, actividade que apenas foi legislada anos depois do Observatório Europeu ter alertado em 2010, que o Reino Unido e outros países tinham ilegalizado algumas dessas substâncias.
Os graves danos em saúde acontecidos a consumidores, em todo o país, e de que ainda existem sequelas, nunca foram inteiramente avaliados e discutidos. O assunto foi abafado.

A Prevenção tem falhado e a actualização em Tratamento também tem muito a desejar. Perdeu-se muito em quantidade e qualidade. 

Há doentes que frequentam diariamente ou semanalmente serviços onde recebem medicação ou receitas médicas e que dizem ter muito reduzido número de consultas médicas por ano, ou que dizem ter consultas espaçadas e/ou muito “rápidas”. 

Há medicamentos subsidiados pelo Ministério da Saúde que são objecto de venda “na rua” e de consumo de abuso (desde há mais de 10 anos) e que continuam no mesmo patamar de fácil acessibilidade. 
  
Quem observar o que se anuncia existir em muita publicidade no mundo da droga em Portugal, e verificar a realidade dos serviços que são “oferecidos” ou prestados nesta área da saúde, seja em prevenção, seja em redução de riscos, seja nos múltiplos tratamentos, seja na recuperação, poderá ficar escandalizado com algumas situações. Afirma-se existir o que não existe. E se todos têm que ser autorizados pelo Ministério da Saúde, muitos serviços são inteiramente ou parcialmente pagos por dinheiros públicos.
Há doentes que afirmam que há estruturas onde praticamente “não viram” médico ou onde não médicos manipularam tratamentos farmacológicos instituídos pelos seus médicos.

Há ainda doentes que referem atitudes estranhas, como seja ter sido tratado em estruturas onde nunca estiveram, ou estar muito tempo, ou onde estiveram pouco tempo.

Também aqui me parece oportuna a pergunta: Na droga quem mais mente? O doente, a família, ou o dirigente?

Quanto ao controle de qualidade de serviços clínicos prestados, parece ser uma fantasia.

Mas parece ser também uma realidade a assimetria da qualidade das respostas clinicas e até a assimetria de procura e necessidades por parte de doentes. Há quem tenha pouca procura.

Quem trabalha e fala com doentes percebe que há locais em que é frágil ou insuficiente o envolvimento das estruturas locais de saúde do SNS. Há profissionais que não têm a formação que desejariam e que é necessária, ou que não receberam formação em patologias aditivas. E há quem tenha transitado das ET do IDT, para as ARS e que também não recebeu formação desejada em diversas áreas da adictologia, prevenção, tratamento e patologia dual, reinserção e recuperação.
Claro que cada profissional faz o que pode e alguns com enorme empenho. Ainda há quem tenha espírito de missão, mas é inegável a existência de insatisfação. Nos últimos dez anos muitos profissionais saíram e não foi com alegria, mas com tristeza e por alívio. 
Este facto ajuda a compreender as assimetrias reais na qualidade dos serviços prestados.
Quando não existe o que devia haver, prefiro que se diga a verdade e defendo que se diga que não há, em vez do faz de conta que existe.

Não se pode falar de sucesso na Prevenção do consumo de mau uso / Redução da Procura.
Neste século é real o incremento de abuso de álcool, cannabis, cocaína (s) como nunca, substâncias sintéticas, e dependências sem substâncias.

Em minha opinião temos vivido muito para agrado das conveniências políticas e muito menos no interesse da Saúde e Bem-estar dos cidadãos e da comunidade.

Sobre o que nos chega sobre o que se passa em muitas escolas e prisões no âmbito de Educação para a Saúde e Prevenção de comportamentos de risco, apenas transmito esta ideia genérica: só toda a verdade nos poderá ajudar a fazer a mudança necessária. Quem lá trabalha tem que ter muito mais competência nesta área, para poder fazer o que se devia ser feito.

Saliente-se que o que os alunos levam para a escola, reflecte a qualidade e quantidade de educação que receberam em casa. 


4 - Acha que Portugal deve dar mais passos em frente, avançando, por exemplo,  para a legalização da cannabis, não apenas em termo de consumo mas também de produção?

Há que rever o que existe mas, falando toda a verdade. Há muita informação pouco clara. Temos permitido que isso aconteça. Há portugueses que pensam que é legal a posse de determinadas quantidades de produto ilegal, mas não é. 
Há consumidores que dizem ter sido interpelados pelas autoridades e que ficaram sem o produto que foi apreendido, ou que ficaram sem o produto que foi pisado e inutilizado, ou que ficaram com o produto, ou que acabaram por consumir o que tinham. Alguns foram enviados para alguma CDT. Mas nem todos a respeitam, ou respeitam as suas propostas e nem todas as propostas são adequadas.

Muitos estrangeiros, mesmo até profissionais, estão convencidos que em Portugal o consumo de canábis é legal. E não é. E na Holanda também não é. Mas muita gente ainda pensa que sim. Há quem tire benefícios da ignorância. 
Há locais públicos onde se apregoa a venda de substâncias ilegais. 
Há passos em frente que já deviam ter acontecido, por exemplo na Redução de Riscos. Temos 16 anos de atraso.
Exemplos de carências que já deviam ter sido ultrapassadas:

Os serviços da droga deviam estar todos na Direcção Geral de Saúde, para que haja menos politiquice e muito mais estratégia organizada e competente. Outrora também havia serviços que reforçavam o estigma, lepra, tuberculose. Felizmente a integração foi feita o que ajudou a contrariar os estigmas e a melhorar o saber intervir. 
Os cuidados de saúde primários e a saúde mental têm que estar muito melhor articulados e assumir em pleno todas as suas responsabilidades. A Psicopatologia associada, a patologia dual é uma realidade que tem que ser encarada por todos.
Para melhorar o dia-a-dia de muitos consumidores com comportamentos de risco, os serviços de saúde tem que reconhecer que desde há mutos anos continuamos com carências por falta de estratégias.
Não temos máquinas para troca de seringas/agulhas 24 h por dia em locais onde fazem falta.
Não temos programas de redução de riscos 7 dias por semana em todos os locais reconhecidos de grande consumo.
Não temos filtros para quem injecta comprimidos.
Não temos seringas de uso único, fundamentais para evitar a sua re utilização.
Não temos Naloxona (medicamento salva vidas) acessível a quem o queira comprar.
Não temos salas para consumo higiénico e recatado, legisladas desde 2001.
Não temos programa de troca de seringas nas prisões, nem tratamento com opióide para todos os que têm necessidade.
Mas temos mais carências, que duram há demasiados anos, nomeadamente de conhecimentos. Mas a informação que continua a correr é que está tudo bem, melhor e controlado. Reconheço que a representação do sucesso que, estar muito alicerçada e projectada por muitos órgãos da mass media nacional e internacional.
E quando, nas situações reais que podemos visitar, algum jovem jornalista ou algum cidadão português ou estrangeiro é confrontado com a realidade, não esconde a estupefacção.

Em visitas com colegas estrangeiros aos bairros de consumo de Lisboa, cito expressões que ouvi:
“Não é isto que Portugal exporta – Colega peruano
“ Há coisa que existem, que se vêm, mas que não são escritas - Colega francês
“Perguntarei aos colegas do OEDT, em que cidade é que vivem- Colega italiano

Podem-se ver imagens e ouvir testemunhos em https://www.youtube.com/user/psimedicina

Tenho partilhado mais algum material para repor o equilíbrio nas verdades, mas reconheço que muitos critérios editoriais não têm permitido que tal aconteça. Tenho vivido algumas situações a que se pode chamar de censura.
Ainda há meses foi anulado por razões técnicas uma colaboração que fiz para televisão, num bairro de uso. E a intervenção oficial emitida foi a de que está tudo bem em Portugal.

Sei que falando incomodo, mas reforço que em minha opinião, é verdade que em Portugal existe uma verdade da conveniência. E que não é a da conveniência de quem sofre porque está em risco de adoecer gravemente ou porque já adoeceu.


Com estima e votos de boa informação, para que também seja formação.
Luis Patricio









PS 

quinta-feira, 16 de junho de 2016

Comportamentos aditivos, liberdade, políticas e saúde mental

Comportamentos aditivos, liberdade, políticas e saúde mental

ESTAR DEPENDENTE É UMA CONSEQUÊNCIA

Comportamentos aditivos, perda de liberdade, políticas e saúde mental

Evoluir é necessário

Os comportamentos de risco em saúde e bem-estar devem ter respostas adequadas, nomeadamente no âmbito da Educação e Saúde. Consumir é um comportamento com riscos. Ficar dependente é uma consequência, um dos danos a serem tratados por quem tenha competência. E a intervenção em Saúde Mental, para ter eficácia deve ser, naturalmente pluridisciplinar.

Em Portugal (e em outros países), durante muitos anos, o Sistema Oficial da Saúde rejeitou a ajuda a pessoas dependentes, incluindo a Saúde Mental. Apenas em1973 surgiu a 1ª consulta diferenciada no Hospital de St Maria, Serviço de Psiquiatria (Prof Dias Cordeiro)) e apenas 1976/77 a 1ª resposta oficial então oficialmente colocada no Ministério da Justiça. Em 1987 surge finalmente a resposta no Ministério da Saúde, com o CTaipas e restantes serviços que se seguiram na criação da rede vertical de implantação de respostas, para num futuro os profissionais e serviços voltarem a ser integrados na restante rede nacional de saúde. Para essa rede SPTT/IDT, contribuíram muitos profissionais das áreas sociais, e tratando-se de doenças, foram fundamentais os médicos, sobretudo de Psiquiatria e de Medicina Geral e Familiar. Conheci largas dezenas e se muitos aceitaram aprender para ajudar, muitos mais continuaram a... rejeitar intervir. 
Alguns mudaram de opinião e outros estão na mesma.

A Patologia aditiva, a dependência patológica, evidencia inegavelmente o sofrimento que atinge a dimensão psíquica de quem sente, e muitas vezes, mas nem sempre, a dimensão física.

Entre nós, muitos Médicos de Medicina Geral e Familiar cuidam abundantemente do sofrimento mental dos seus doentes. E quando necessário articulam com os Serviços de Psiquiatria. Mas é verdade que alguns, por várias razões, não cuidam dos que sofrem de patologia aditiva.
Entre nós, muitos Psiquiatras e cada vez mais os mais jovens cuidam abundantemente de doentes que sofrem de patologia aditiva.

Os serviços de Saúde Mental têm que assumir plenamente as suas responsabilidades. Já o tenho dito e escrito. Aumentado o conhecimento e quebrado o estigma, também em devido tempo deixou de haver serviços verticais para a lepra, e para a tuberculose.

Em Portugal, desde há uma década de anos, pelo menos, o que temos visto a descarrilar, manifestamente revela o que se fez ou não fez com competência. Da publicidade que se reconhece, para mal da saúde e bem-estar, destaca-se o avanço de comportamentos com riscos.
Quanto ao tratamento e recuperação de quem adoeceu, apesar da publicidade que se reconhece, as assimetrias atingem a dimensão da amargura em doentes e também em quem para eles trabalha. Há profissionais que têm MEDO de dizer o que pensam, com receio das avaliações que possam surgir. A graxa voltou ao departamento. “Não posso falar muito porque ainda estou lá dentro” MF profissional de enfermagem.

A agonia que existe em alguns serviços, a mágoa que existe em doentes e profissionais, o que falta na redução de riscos e na recuperação, o descontrolo na procura, ultrapassa-se com competência profissional e verdade, e não com a complacência com a inércia e satisfação de responsáveis técnicos e políticos, existentes desde há mais de uma década. Ainda há 3 anos ouvi da boca do responsável do MS a sua satisfação com a sua equipa… Quem quer sobreviver flutua na crise, para agradar a quem manda, de alto a baixo.

É preciso mudar, para servir quem necessita… Porque sou livre a pensar sou pela mudança.
A formiga no carreiro vinha em sentido diferente… ZA
https://www.letras.com/jose-afonso/67140/


sexta-feira, 20 de maio de 2016

A DROGA CONTINUA MAL. ATÉ ONDE VAMOS DESCER? Mais de 10 anos de propaganda não escondem a realidade.

Em Portugal a droga continua mal

Até onde vamos descer?

Mais de 10 anos de propaganda não escondem a realidade


Pela nossa SAÚDE,
prevenir o mal-estar, o sofrimento, 
faz muita falta
Há que rever o que acontece ou não acontece na PREVENÇÃO e EDUCAÇÂO, no TRATAMENTO, na REINSERÇÃO na RECUPERAÇÃO, na FORMAÇÃO e na PROGRAMAÇÃO de POLÍTICAS em SAÚDE

 Pensar e trabalhar em patologia aditiva é trabalhar em comportamentos de risco, em patologia dual, trabalhar em saúde mental

.
1 - Reconheço
Desde há largos anos, o que é divulgado, o que se lê e ouve na comunicação alinhada, não corresponde ao que temos visto e ao que nos diz quem sofre, os doentes e seus familiares e até profissionais de saúde e do ensino, que trabalham no terreno.
A dimensão do que aconteceu em Portugal nos últimos anos também tem sido ignorada em relatórios de agências, que só divulgam o que oficialmente recebem.
Mas calar o que não convém não anula a existência do omitido. Na nossa realidade, desde há mais de dez anos tem aumentado o consumo de abuso público e privado de substâncias legais e ilegais. Abunda cocaína social, laboral, privada, entregue também ao domicilio. Abunda o consumo escolar de canabis e tabaco. Abunda o abuso de álcool e o consumo de sintéticas. A heroína recupera adeptos? O abuso de sedativos mantém-se.
Em Portugal tem diminuído a qualidade e quantidade no tratamento de doentes e na redução de riscos. E nos profissionais do terreno, tem aumentado o incómodo, desalento e exaustão, até mesmo o medo de falar.




2  - Desvio na verdade
Abordar o que não está correcto tem sido politicamente incorrecto. E ainda que as observações feitas sejam tecnicamente incontestáveis e verdadeiras, o medo de falar destes assuntos, faz com que haja falta de verdade. Sim, porque o receio de ser mal classificado, de perder a graça da chefia e até o emprego, faz com que haja quem se cale ou oculte a verdade.

A perda e ausência de condições para trabalhar
A perda ou até a degradação da qualidade e de condições de trabalho na última década é uma realidade e não é uma raridade.

A título de exemplo transmito uma vez mais, o que já ouvimos de doentes, familiares ou profissionais: doentes com poucas consultas médicas, doentes mal medicados ou diagnosticados ou insuficientemente medicados, ou que não conhecem o médico; análises feitas fora de prazo; doentes que fazem autogestão de medicação cujas receitas são sistematicamente obtidas e entregues por profissionais que não são médicos nem enfermeiros; usurpação de funções médicas.
Há quem, sendo doente, prepare a sua dose de metadona?
Há quanto tempo não tem consulta e observação médica?
O que é que se vende “à porta” do serviço? E há quantos anos isso continua a acontecer?

A procura para tratamento pode oscilar localmente entre a sobrecarga para um médico que não tem capacidade de resposta em tempo ou conhecimentos adequado, outra falta de recursos, e a não existência de… clientes. E neste caso, para manter o lugar e a porta aberta, é “agarrado” tudo o que possa ter algum sintoma ou queixa, para justificar números, mesmo que o cliente não sofra de adição.

Quem é que sendo profissional ou sendo doente esclarecido, está satisfeito com o insuficiente cumprimento da lei de redução de riscos, criada há 15 anos?
E quem está satisfeito com a limitação ou ausência na Educação para a Saúde insuficiência na Prevenção?

3 - Desmotivação e assédio
Após dezenas de anos de muito entusiasmo de muitos profissionais, na última década constata-se que a desmotivação tem sido crescente, existe e é um problema grave. Há quem use baixas prolongadas por cansaço, por doença e há outras situações.
Não são poucos os profissionais que saíram para se proteger e foram muitos os que o desejaram e não puderam.
E há quem, para garantir o salário ou, para não ser prejudicado na reforma, se sujeite ao assédio moral, à agressividade ou falta de saber ou de competência de chefias.

Há quem silencie o sofrimento. Há quem, sendo profissional, tenha medo de falar, de ser mal classificado ou ignorado, de não progredir e ser marginalizado por chefias cada vez mais engraxadas e engraxadoras junto das suas chefias.

É sabido que, quando os poderes reinantes gostam de bajulação, cria-se espaço para os perversos que os adoram e se alimentam da tensão com a manipulação. Cria-se o espaço para o assédio moral.

4 - Quebrar tabus ou continuar ondulando?
Droga de droga em Portugal acontece quando não importa a verdade, não vale toda a verdade, porque importa o protagonismo da droga de sucesso que mascara o insucesso.
Falar da realidade do insucesso é tabu. Mas há muito que é tempo de quebrar tabus.
Importa quebrar tabus muros e abrir as portas dos quintais ou quintas.
É preciso tirar a máscara de quem retém à distância, fora do sistema, pessoas ou ideias ou saberes, que não se deseja que entrem. Isto acontece quando não entram no sistema doentes incómodos ou profissionais incómodos.

E é preciso tirar a máscara de quem retém intramuros pessoas ou ideias que não devem, ou melhor não se desejam que saiam. Isto acontece quando não podem sair do sistema profissionais desgastados com o sistema, ou doentes melhorados para que não se fique com menos doentes ou apenas com “os piores”.

Em Portugal, entre o “está tudo bem” dos carentes mas alegres, e o incómodo dos carentes e tristes com os recuos, temos estado ondulando ou naufragando na carência de avanços e de meios de intervenção.

Não têm faltado as tentativas de entorpecimento do pensamento com consoladoras notícias de sucesso para o exterior com dados trabalhados.

Assim se tem vivido por cá com lugares conservados e colocações cúmplices, governantes consolados porventura enganados e enganando, assim vamos desandando.

Há quem veja vaidade e falta na verdade do poder, atitude que faz de nós ridículos lá fora e até medíocres com a caricatura de sucesso que esconde o desânimo, e falta de vigor cá dentro.

O descrédito, o desconforto reflecte-se por exemplo com os tratamentos insuficientes, com incremento do abuso de cocaínas, de cannabis, de álcool, de sedativos, de substâncias sintéticas, com as carências na redução de riscos nas ruas e nas cadeias, com o descuido ou incapacidade de tratamento em patologia dual, enfim com o retrocesso e a falta de progresso cá dentro.

Mas para alguns dirigentes está tudo bem, mas só para essa minoria.
É necessário o conhecimento e uso de toda a verdade.
A mudança é necessária.