ABUSOS, ESCRAVATURAS & IMPACTOS
Abuso e dependência de substâncias e actividades sexuais com riscos acrescidos
FRANCISCA, a FLOR
A cor da pele, da vida e dos consumos
Vídeo enviado ao Simposium Internacional
ESCRAVATURA
Qual o seu impacto na psicologia das populações?
Presidente
Prof Doutor Charles Nicolas
Martinique Guadelupe Outubro 2016
Homenagem aos que sofrem, aos que nos ajudam a melhor ajudar
A jornalista Raquel Lito, interessou-se pelo esforço de Francisca e pela boa evolução do tratamento e, publicou o seu trabalho na revista Sábado.
Com o seu acordo, publico parte das respostas às questões que me colocou, a propósito do trabalho com pessoas com comportamentos de risco, associando abuso de substâncias e actividades sexuais.
RL - Como teve conhecimento deste
caso-limite?
LP- Há muitos anos que ajudo pessoas que vivem
condições de exclusão. Se um doente que ajudamos se sente bem e fala, outros
aparecem. É normal tratar pessoas com comportamentos de risco associando consumo
de substâncias droga e actividades sexuais.
Tive oportunidade de ajudar a criar novas
formas de intervenção na exclusão. Esta actividade de ajuda aumentou bastante,
desde 1987 com a criação do Centro das Taipas no centro de Lisboa. Muitas das
nossas doentes prostituíam-se na área, da Avenida da Liberdade ao Bairro Alto e
em outras zonas da cidade.
E, em 2001, fizemos em Lisboa um significativo
aumento de intervenção, com o programa na rua para redução de riscos, seis
noites por semana, a Rota da Noite. Funcionou, desde o Técnico ao Restelo, para
apoio a mulheres e rapazes que se prostituíam.
Ambos os casos são passado, do qual muito me
honro. E destaco aqui o empenho de muitos colaboradores que ainda hoje nos
estimam, monitores, técnicos psicossociais e assistentes sociais.
Há que
lembrar que nesse tempo, apenas havia uma carrinha do Ministério da Saúde que
intervinha à noite, apenas um dia por semana.
Sair das
Taipas e continuar a ajudar
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Fumar cocaína na rua em Lisboa. Foto LP |
Em 2008 decidi deixar as responsabilidades de
direcção do Centro das Taipas, por sentir crescente e indisfarçável
desconsideração, criação de dificuldades (vulgo assédio moral), por quem
mandava, orientava as estratégias e politicas. Negar a perda de qualidade e
fazer de conta, garante lugares mas prejudica os doentes, condição que não
aceitei. Mas logo escrevi a pedir para lá continuar a trabalhar como médico
voluntário. Esperei largos, largos muitos meses até que fui autorizado a
trabalhar voluntariamente. E trabalhei até que na consulta da semana a seguir
ao Natal (2011), fui avisado por uma técnica que na semana seguinte, após o fim
de ano acabava o meu voluntariado. Claro que não pude despedir-me de todos os
doentes da instituição que ajudei a criar e dirigi por 21 anos. Mas alguns
doentes, dos mais carenciados e que confiavam em mim, continuaram a receber os
meus cuidados. Claro que não pude oferecer o meu trabalho a muitos, mas isso aconteceu
e continua a acontecer, o que é natural na vida de um médico.
Continuar
a ajudar
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Lisboa. Para além das nuvens carregadas há azul - Foto LP |
Posteriormente, por convite da Dr.ª Inês
Fontinha aumentei a colaboração com O Ninho, http://www.oninho.pt/ ainda no âmbito do apoio a
mulheres prostituídas, colaboração voluntária que mantenho.
Como em outras áreas da Medicina, uma pessoa
doente que se sente ajudada mobiliza outra.
Nos últimos seis anos destaco o apoio a
pessoas dependentes que se prostituíam: três raparigas bastante jovens, duas
mães e duas avós.
A Francisca ou Maria foi-me referenciada há
cerca de dois anos por outra senhora que já trato desde há seis anos, e que me
pediu para continuar comigo depois de eu sair das Taipas. Ambas compravam na
rua medicamentos para aliviar o seu sofrimento. Ambas iniciaram o tratamento
comigo.
A confiança vai-se estabelecendo. É comum assim acontecer em pessoas
mais castigadas pelas vidas esforçadas.
RL - Tendo
o Dr. acompanhado mais mulheres com perfil idêntico, o comportamento de Maria é
expectável?
LP- Lutar pela vida desde a infância, mudar
significativamente de referências, deixa marcas. E em certas áreas psíquicas
modifica o que seria desejável: a harmonia no desenvolvimento.
A subsistência conquista-se no dia-a-dia. Se
o consumo de substâncias psicoactivas (legais ou ilegais) pode ser um “escape”,
espécie de alívio para sofrimentos, a dependência que se instala é um calvário
acrescido na vida destas mulheres, jovens, mães ou avós.
Naturalmente
que eu e muitos outros colegas meus já ajudámos muitas pessoas a mudar de vida.
As pessoas procuram tratamento para melhorar dos seus sofrimentos, melhorar a
qualidade de vida.
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Parque Eduardo VII em Lisboa. Pela cidade há outros labirintos bem mais difíceis de percorrer. Foto LP. |
Naturalmente
que a Prevenção de Comportamentos de Risco, a Redução de Riscos associados a
múltiplos comportamentos de risco, foram temas obrigatoriamente em reflexão
durante o tratamento e recuperação.
Consultas
de inicio semanalmente, depois quinzenalmente. Contacto telefónico disponível
Evolução
foi sendo desde início e progressivamente muito favorável.
Trata-se
de um processo de elaboração. Há sempre quem faça projectos de mudança: para um
dia, para o mês que vem, para o ano que vem. E acontece.
A
esperança mobiliza, os receios podem estimular a prudência e o desejo de
mudança.
Nas
doenças de adição a recidiva é uma possibilidade. Se acontecer que seja daqui a
50 anos… Se for antes, cá estaremos para ajudar de novo a caminhar.
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Outono em Lisboa. Foto LP |
RL- Como descreve o seu estado de
espírito na última consulta?
LP- Entusiasmada.
Manifestou muita gratidão estima e emoção. “Agora sinto-me muito bem, graças a
Deus conheci o sr dr, comecei a ver… Esta vida não pode ser para mim. Nestas
vidas uma pessoa não pensa, anda fora. Agora digo estou bem, tenho que lutar
pela minha vida, não sou velha, tenho que lutar sim…… Muito obrigado” (sorri,
aperto de mão, baixa os olhos e deixa cair uma lágrima).
Exercer
medicina, prestar serviço é um privilégio.
Medicina é Ciência, Arte e Humanismo. Educação para a Saúde e Bem-estar
são conquistas que deviam estar ao alcance de todos os cidadãos. Todos somos
iguais, mas gerimos o que temos de forma diferente. Há quem tenha pouco ou
nada, quem desperdice, quem seja mais bafejado e ainda quem valorize a Família
e Amigos.
São muitos os médicos que, pelo país, exercem
medicina em benefício de quem deles necessita oferecendo o seu trabalho para
além do seu horário e também cuidando de quem viva na exclusão (miséria,
pobreza e pobreza envergonhada).
Em Portugal - O que
falta fazer
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+++Copos & Noite. Tá-se bem Foto LP. |
RL- O que falta fazer no apoio a
toxicodependentes nestas circunstâncias?
LP - Há muito
a fazer, nomeadamente anular um desinvestimento e melhorar muito a qualidade e
condições de trabalho.
Em Portugal desde há 12 anos, em minha
opinião, vimos a retroceder bastante no apoio e recuperação de pessoas doentes
nestas circunstâncias e noutras.
A falta de satisfação de quem trabalha com
doentes com patologia aditiva e doenças associadas, patologia dual, tem sido
uma realidade crescente, ainda que haja quem tente esconder ou atirar a
responsabilidade para outros. Não haverá dirigentes instalados e em silêncio?
Quem se cala não incomoda.
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Escadas de chuto. Lisboa. Foto LP |
Mas há muitos profissionais que estão
insatisfeitos desde há muitos anos. Em Portugal muitos estão desmotivados. E de
há muito que há quem receie falar, com medo de que uma mudança ainda piore a
sua situação.
Há ainda quem trabalhe muito, bastante mais
do que devia e há também os que falam mas não fazem muito…ou não estão lá.
São os doentes e os profissionais do terreno
quem melhor reconhece como que foram e como têm decaído serviços públicos e ong
que outrora ajudaram muitas pessoas doentes, familiares e profissionais em
formação.
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Charro sempre que se queira. Qualidade? Importa? Foto LP |
Nos Centros de Saúde das ARS, a integração
das equipas de tratamento de patologias aditivas deveria ser muito melhorada,
reforçada com muito mais profissionais e médicos com competências. Este modelo
de proximidade é muito útil para os doentes. E a existência de boas integrações
em zonas diferentes como por exemplo em unidades do Alentejo ou do Norte, são
prova da utilidade na integração.
Os serviços de psiquiatria e saúde mental, felizmente, cada vez mais estão a assumir as suas responsabilidades no tratamento de
doentes com patologia dual.
Os Centros de Saúde, com todas as suas
valências são a estrutura base de maior proximidade de acesso e tratamento. A
ligação, a inter-acção com os serviços de saúde mental é obrigatória. Que apoio
têm tido estas estruturas?
Quem é que está muito satisfeito?
Recriar em Portugal, em 2017 um serviço rede
vertical para a droga / patologias aditivas seria reforçar o estigma, recriar
lugares protegidos, não seria cuidar melhor da saúde dos doentes: muitos
doentes são policonsumidores e têm outras patologias associadas. Quem tem todas
essas competências? Voltamos ao jogo do empurra para lá porque não é daqui?
Em Portugal, pertencem à história os serviços
estigmatizantes para a lepra, tuberculose, droga, doenças venéreas,
dispensários de saúde mental. Hoje as respostas estão integradas nos serviços.
E em estruturas não-governamentais quem é que
garante a qualidade de serviços publicitados? E são todos prestados?
Há que ter coragem para realçar as
necessidades dos doentes e de suas famílias em troca de outros interesses de outros "actores sociais".
Recordo que em Portugal não há especialidade de Medicina das Adições. Não
raramente são contratados profissionais como se fossem peritos que não têm nada
de peritagem, não são especialistas em abuso de álcool, cocaína, heroína,
álcool, tabaco, vários medicamentos de abuso, canábis, sintéticas legais e
ilegais, dependências sem substância, etc, e toda a patologia dual, psicopatologia
e patologia infecciosa associadas.
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Comprar na rua. Injectar na rua. Lisboa. Foto LP |
Há muito a mudar em Portugal, para melhorar a
qualidade e estratégias de saúde. Basta do mesmo, de muitos anos de recuo para
não repetir.
Há que conhecer toda a verdade, até nas
prescrições de medicamentos subsidiados e que abastecem o mercado de rua e ir
para além da simpática verdade da conveniência.
A mudança para melhor têm que acontecer.