domingo, 5 de fevereiro de 2017

ABUSOS, ESCRAVATURAS & IMPACTOS Dependência de substâncias e actividades sexuais




ABUSOS, ESCRAVATURAS & IMPACTOS

Abuso e dependência de substâncias e actividades sexuais com riscos acrescidos

FRANCISCA, a FLOR
A cor da pele, da vida e dos consumos

Vídeo enviado ao Simposium Internacional

ESCRAVATURA
Qual o seu impacto na psicologia das populações?
Presidente
Prof Doutor Charles Nicolas

Martinique Guadelupe Outubro 2016

Homenagem aos que sofrem, aos que nos ajudam a melhor ajudar 

A jornalista Raquel Lito, interessou-se pelo esforço de Francisca e pela boa evolução do tratamento e, publicou o seu trabalho na revista Sábado.
Com o seu acordo, publico parte das respostas às questões que me colocou, a propósito do trabalho com pessoas com comportamentos de risco, associando abuso de substâncias e actividades sexuais.

RL - Como teve conhecimento deste caso-limite?
LP- Há muitos anos que ajudo pessoas que vivem condições de exclusão. Se um doente que ajudamos se sente bem e fala, outros aparecem. É normal tratar pessoas com comportamentos de risco associando consumo de substâncias droga e actividades sexuais. 
Tive oportunidade de ajudar a criar novas formas de intervenção na exclusão. Esta actividade de ajuda aumentou bastante, desde 1987 com a criação do Centro das Taipas no centro de Lisboa. Muitas das nossas doentes prostituíam-se na área, da Avenida da Liberdade ao Bairro Alto e em outras zonas da cidade.
E, em 2001, fizemos em Lisboa um significativo aumento de intervenção, com o programa na rua para redução de riscos, seis noites por semana, a Rota da Noite. Funcionou, desde o Técnico ao Restelo, para apoio a mulheres e rapazes que se prostituíam.
Ambos os casos são passado, do qual muito me honro. E destaco aqui o empenho de muitos colaboradores que ainda hoje nos estimam, monitores, técnicos psicossociais e assistentes sociais.
Há que lembrar que nesse tempo, apenas havia uma carrinha do Ministério da Saúde que intervinha à noite, apenas um dia por semana.

Sair das Taipas e continuar a ajudar

Fumar cocaína na rua em Lisboa. Foto LP
Em 2008 decidi deixar as responsabilidades de direcção do Centro das Taipas, por sentir crescente e indisfarçável desconsideração, criação de dificuldades (vulgo assédio moral), por quem mandava, orientava as estratégias e politicas. Negar a perda de qualidade e fazer de conta, garante lugares mas prejudica os doentes, condição que não aceitei. Mas logo escrevi a pedir para lá continuar a trabalhar como médico voluntário. Esperei largos, largos muitos meses até que fui autorizado a trabalhar voluntariamente. E trabalhei até que na consulta da semana a seguir ao Natal (2011), fui avisado por uma técnica que na semana seguinte, após o fim de ano acabava o meu voluntariado. Claro que não pude despedir-me de todos os doentes da instituição que ajudei a criar e dirigi por 21 anos. Mas alguns doentes, dos mais carenciados e que confiavam em mim, continuaram a receber os meus cuidados. Claro que não pude oferecer o meu trabalho a muitos, mas isso aconteceu e continua a acontecer, o que é natural na vida de um médico.

Continuar a ajudar

Lisboa. Para além das nuvens carregadas há azul - Foto LP
Posteriormente, por convite da Dr.ª Inês Fontinha aumentei a colaboração com O Ninho, http://www.oninho.pt/ ainda no âmbito do apoio a mulheres prostituídas, colaboração voluntária que mantenho.
Como em outras áreas da Medicina, uma pessoa doente que se sente ajudada mobiliza outra.
Nos últimos seis anos destaco o apoio a pessoas dependentes que se prostituíam: três raparigas bastante jovens, duas mães e duas avós.
A Francisca ou Maria foi-me referenciada há cerca de dois anos por outra senhora que já trato desde há seis anos, e que me pediu para continuar comigo depois de eu sair das Taipas. Ambas compravam na rua medicamentos para aliviar o seu sofrimento. Ambas iniciaram o tratamento comigo.
A confiança vai-se estabelecendo. É comum assim acontecer em pessoas mais castigadas pelas vidas esforçadas.

RL - Tendo o Dr. acompanhado mais mulheres com perfil idêntico, o comportamento de Maria é expectável?  
LP- Lutar pela vida desde a infância, mudar significativamente de referências, deixa marcas. E em certas áreas psíquicas modifica o que seria desejável: a harmonia no desenvolvimento.
A subsistência conquista-se no dia-a-dia. Se o consumo de substâncias psicoactivas (legais ou ilegais) pode ser um “escape”, espécie de alívio para sofrimentos, a dependência que se instala é um calvário acrescido na vida destas mulheres, jovens, mães ou avós.
Naturalmente que eu e muitos outros colegas meus já ajudámos muitas pessoas a mudar de vida. As pessoas procuram tratamento para melhorar dos seus sofrimentos, melhorar a qualidade de vida.
Parque Eduardo  VII em Lisboa. Pela cidade há outros labirintos bem mais difíceis de percorrer. Foto LP.
Naturalmente que a Prevenção de Comportamentos de Risco, a Redução de Riscos associados a múltiplos comportamentos de risco, foram temas obrigatoriamente em reflexão durante o tratamento e recuperação. 
Consultas de inicio semanalmente, depois quinzenalmente. Contacto telefónico disponível
Evolução foi sendo desde início e progressivamente muito favorável.
Trata-se de um processo de elaboração. Há sempre quem faça projectos de mudança: para um dia, para o mês que vem, para o ano que vem. E acontece.
A esperança mobiliza, os receios podem estimular a prudência e o desejo de mudança.
Nas doenças de adição a recidiva é uma possibilidade. Se acontecer que seja daqui a 50 anos… Se for antes, cá estaremos para ajudar de novo a caminhar.
Outono em Lisboa. Foto LP


RL- Como descreve o seu estado de espírito na última consulta?
LP- Entusiasmada. Manifestou muita gratidão estima e emoção. “Agora sinto-me muito bem, graças a Deus conheci o sr dr, comecei a ver… Esta vida não pode ser para mim. Nestas vidas uma pessoa não pensa, anda fora. Agora digo estou bem, tenho que lutar pela minha vida, não sou velha, tenho que lutar sim…… Muito obrigado” (sorri, aperto de mão, baixa os olhos e deixa cair uma lágrima).





Em síntese
Exercer medicina, prestar serviço é um privilégio.
Medicina é Ciência, Arte e Humanismo. Educação para a Saúde e Bem-estar são conquistas que deviam estar ao alcance de todos os cidadãos. Todos somos iguais, mas gerimos o que temos de forma diferente. Há quem tenha pouco ou nada, quem desperdice, quem seja mais bafejado e ainda quem valorize a Família e Amigos. 
São muitos os médicos que, pelo país, exercem medicina em benefício de quem deles necessita oferecendo o seu trabalho para além do seu horário e também cuidando de quem viva na exclusão (miséria, pobreza e pobreza envergonhada).

Em Portugal - O que falta fazer

+++Copos & Noite. Tá-se bem Foto LP. 
RL- O que falta fazer no apoio a toxicodependentes nestas circunstâncias?
LP - Há muito a fazer, nomeadamente anular um desinvestimento e melhorar muito a qualidade e condições de trabalho.
Em Portugal desde há 12 anos, em minha opinião, vimos a retroceder bastante no apoio e recuperação de pessoas doentes nestas circunstâncias e noutras.
A falta de satisfação de quem trabalha com doentes com patologia aditiva e doenças associadas, patologia dual, tem sido uma realidade crescente, ainda que haja quem tente esconder ou atirar a responsabilidade para outros. Não haverá dirigentes instalados e em silêncio? Quem se cala não incomoda.
Escadas de chuto. Lisboa. Foto LP
Mas há muitos profissionais que estão insatisfeitos desde há muitos anos. Em Portugal muitos estão desmotivados. E de há muito que há quem receie falar, com medo de que uma mudança ainda piore a sua situação.
Há ainda quem trabalhe muito, bastante mais do que devia e há também os que falam mas não fazem muito…ou não estão lá.

São os doentes e os profissionais do terreno quem melhor reconhece como que foram e como têm decaído serviços públicos e ong que outrora ajudaram muitas pessoas doentes, familiares e profissionais em formação.

Charro sempre que se queira. Qualidade? Importa? Foto LP 
Nos Centros de Saúde das ARS, a integração das equipas de tratamento de patologias aditivas deveria ser muito melhorada, reforçada com muito mais profissionais e médicos com competências. Este modelo de proximidade é muito útil para os doentes. E a existência de boas integrações em zonas diferentes como por exemplo em unidades do Alentejo ou do Norte, são prova da utilidade na integração.
Os serviços de psiquiatria e saúde mental, felizmente, cada vez mais estão a assumir as suas responsabilidades no tratamento de doentes com patologia dual.

Os Centros de Saúde, com todas as suas valências são a estrutura base de maior proximidade de acesso e tratamento. A ligação, a inter-acção com os serviços de saúde mental é obrigatória. Que apoio têm tido estas estruturas?
Quem é que está muito satisfeito?

Recriar em Portugal, em 2017 um serviço rede vertical para a droga / patologias aditivas seria reforçar o estigma, recriar lugares protegidos, não seria cuidar melhor da saúde dos doentes: muitos doentes são policonsumidores e têm outras patologias associadas. Quem tem todas essas competências? Voltamos ao jogo do empurra para lá porque não é daqui?
Em Portugal, pertencem à história os serviços estigmatizantes para a lepra, tuberculose, droga, doenças venéreas, dispensários de saúde mental. Hoje as respostas estão integradas nos serviços.

E em estruturas não-governamentais quem é que garante a qualidade de serviços publicitados? E são todos prestados?

Há que ter coragem para realçar as necessidades dos doentes e de suas famílias em troca de outros interesses de outros "actores sociais". Recordo que em Portugal não há especialidade de Medicina das Adições. Não raramente são contratados profissionais como se fossem peritos que não têm nada de peritagem, não são especialistas em abuso de álcool, cocaína, heroína, álcool, tabaco, vários medicamentos de abuso, canábis, sintéticas legais e ilegais, dependências sem substância, etc, e toda a patologia dual, psicopatologia e patologia infecciosa associadas.
Comprar na rua. Injectar na rua. Lisboa. Foto LP
 Há muito a mudar em Portugal, para melhorar a qualidade e estratégias de saúde. Basta do mesmo, de muitos anos de recuo para não repetir.

Há que conhecer toda a verdade, até nas prescrições de medicamentos subsidiados e que abastecem o mercado de rua e ir para além da simpática verdade da conveniência.

A mudança para melhor têm que acontecer. 

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